Na madrugada de 27 de Dezembro, Maputo e Matola tornaram-se palco de um espetáculo de medo e caos. Homens armados com catanas, alegadamente reclusos foragidos, teriam invadido casas e ferido pessoas, segundo relatos que inundaram redes sociais e grupos de mensagens. Tambores, apitos e vuvuzelas ecoaram pelas ruas enquanto moradores se organizavam em brigadas de vigilância, determinados a proteger os seus lares.
Credito: Bendito Nascimento
No entanto, quando a luz do dia dissipou a escuridão, algo surpreendente emergiu: nenhuma evidência concreta confirmou as alegações. Não há registos hospitalares de feridos, nem vítimas que tenham relatado publicamente danos ou roubos. Então, o que realmente aconteceu naquela noite?
O que significa que milhares de pessoas tenham saído de suas casas, alarmadas, sem que houvesse uma única vítima identificada? A narrativa dos homens-catana reflecte algo maior do que um incidente isolado; ela revela como as sociedades, quando envoltas em incerteza, podem ser manipuladas pelo medo e pela desinformação.
O caso moçambicano não é único. Em várias partes do mundo, o pânico colectivo foi fomentado para atingir objectivos políticos ou sociais. Durante a Revolução Francesa, rumores sobre conspirações aristocráticas levaram à “Grande Medo”, uma onda de violência e paranoia que serviu para consolidar o poder revolucionário.
Mais recentemente, na Colômbia, boatos sobre grupos paramilitares em zonas urbanas frequentemente justificavam operações de repressão.
Em Moçambique, vivemos um momento pós-eleitoral tenso, marcado por protestos e uma crescente desconfiança nas instituições do Estado. A ausência de provas concretas sobre os supostos ataques não apenas suscita dúvidas sobre a veracidade dos relatos, mas também levanta questões sobre os interesses por trás dessa disseminação de pânico.
Quem lucra com o medo?
O medo nunca é inocente; ele é, frequentemente, uma ferramenta de controle. A teoria de que os homens-catana foram usados como estratégia para desmobilizar a sociedade civil não pode ser ignorada. Em contextos onde o governo enfrenta críticas por suposta fraude eleitoral, a criação de um clima de instabilidade serve para enfraquecer as bases de protesto e organização popular.
Se os bairros estão ocupados a vigiar as suas ruas, quem tem tempo ou energia para manifestar contra resultados eleitorais contestados? Se as redes sociais estão sobrecarregadas com rumores “alarmantes”, como encontrar espaço para a análise crítica?
Essa estratégia, embora perversa, não é nova. No regime militar do Brasil, na década de 1960, histórias de “inimigos internos” justificaram actos de repressão e censura. Na África do Sul do apartheid, boatos sobre gangues negras violentas foram deliberadamente espalhados para justificar intervenções militares em comunidades pobres.
O impacto psicológico e social
Independentemente da origem ou veracidade dos rumores, o impacto nos cidadãos é profundo. Naquela noite, comunidades inteiras foram tomadas por um estado de sítio autoinfligido, onde vizinhos desconfiaram uns dos outros, e suspeitos foram linchados com base em acusações infundadas.
Este tipo de paranóia colectiva enfraquece o tecido social, alimentando divisões e promovendo uma mentalidade de “nós contra eles”. Além disso, o uso de narrativas como essa para distrair ou desmobilizar populações em tempos de crise mina a confiança nas instituições democráticas.
Como reconstruir essa confiança quando o próprio Estado não se posiciona claramente sobre os eventos? Onde estão as autoridades a investigar os supostos ataques? Por que não há uma declaração pública que esclareça o que ocorreu?
Perguntas que incomodam
Por que razão não há registos de vítimas, apesar da dimensão dos rumores?
Será que o pânico foi deliberadamente fomentado?
Que lições podemos tirar sobre o papel das redes sociais na amplificação do medo?
Quais são as consequências de um Estado que não responde prontamente a momentos de crise?
O poder destruitivo da desinformação
As redes sociais, muitas vezes celebradas por democratizar o acesso à informação, podem facilmente transformar-se em armas de desinformação. Na ausência de verificações rigorosas, boatos ganham uma força devastadora. Durante a pandemia de COVID-19, vimos como rumores sobre curas falsas ou conspirações globais causaram danos irreversíveis, minando os esforços de saúde pública.
Em Moçambique, o episódio dos homens-catana reforça a urgência de uma educação digital que capacite os cidadãos a analisar criticamente as informações que consomem e partilham.
A longa sombra do medo
Os homens-catana podem nunca ter existido, mas o impacto deles é real. Eles expuseram as nossas vulnerabilidades: a fragilidade das nossas instituições, a facilidade com que somos manipulados pelo medo e a profunda desconfiança que permeia a nossa relação com o poder.
Se não abordarmos estas questões de frente, correremos o risco de viver em ciclos constantes de paranoia e manipulação. Porque, como a história nos ensina, o medo não desaparece por si só; ele apenas se transforma, encontrando novas formas de nos dividir e controlar.
E, talvez, a pergunta mais importante seja esta: quem será o próximo “homem-catana”? E estaremos preparados para enfrentá-lo com lucidez, ou continuaremos a reagir com medo?